segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Tateando no Escuro

A Viviane.

Cinco da tarde, uma tarde ensolarada. Livro, chaves, passagens. Peguei tudo, não esqueci nada. Abri a porta. Não abri o portão. Uma moça passava pela calçada da frente e dois moleques
passavam logo atrás dela. Olharam pra mim. Olhei pra eles já desviando o olhar. Eram do tipo suspeito que eu sairia correndo se os visse pelas minhas costas. Hesitei pra abrir portão, fingindo que procurava algo no livro.
Nem 15 segundos se passaram e a moça já gritava por socorro enquanto a agrediam na covardia de levar sua bolsa. Eu assistia à cena cruel. Apenas na sensação agonizante do medo que paraliza todos os seus músculos. Essa cena foi ainda mais rápida e logo os dois estavam a correr.Podia vê-la mancando na tentativa de correr atrás deles e ouvir seu choro de desespero.
Demorei alguns segundos para me mover e começar a pensar.
Ligar pra polícia? Duas vezes já liguei para ocorrências ali e até hoje estou esperando uma viatura passar. Totalmente inútil. Chamar ela pra entrar. Um copo de água, uns telefonemas, um dinheiro talvez. Acenei num gesto para ela vir até mim , que ainda estava do lado de dentro do portão. Acho que ela não me viu. Foi quando um fusca parou para entender o que acontecia que eu pude sentir de novo minhas pernas e sair dali ao encontro da moça.
Tentei acalmá-la sendo otimista, dizendo que poderia ser muito pior. Ofereci qualquer coisa que ela precisasse de dentro de casa, mas o choque de perder tudo que havia de importante naquela bolsa parecia a dominar por dentro. Ajudei a descrever os sujeitos para a mulher do fusca, que agora terminava de falar com o 190.
Aos poucos outras duas ou três pessoas também foram chegando, mas naquele impulso humano da curiosidade de ver um desastre de perto. Não paravam de comentar dos perigos da vizinhança, enquanto eu imaginava que isso de nada iria ajudar no desespero da moça. Senão piorar sua situação. Mas ainda assim tentavam se informar do que poderia ser feito.
"Teu marido não tem celular pra gente pedir ajuda?"
"Eu não sou casada, não tenho marido". Pelo silêncio, acho que quem perguntou não esperava essa resposta, ainda mais depois que ela disse que tinha 39 anos. Até nessas horas um pensamento tradicional conservador não escapa.
"Mas e tua mãe...?"
"Mãe pra quê, só pra dar preocupação pra ela? Família é uma droga...Eu sou sozinha mesmo."
Essas últimas três palavras que me tocaram. Queria ter dito a ela que não estava sozinha, que nós estávamos aqui pra ajudar, que Deus não nos abandona. Mas...nem eu mais tinha tanta
certeza se essa força divina realmente existia, e duvidei se a presença de uma menina de 19 anos, sem carro ou qualquer outro meio de ajuda maior poderia ser considerada como "não estar sozinha".
Quando ela disse que tinha uma casa construindo por perto, com alguém lá que poderia ajudar, eu preferi não pensar duas vezes.
"Qual teu nome?"
"Viviane."
Me mostrou a direção e eu saí em disparada procurando uma ajuda, um rosto amigo pra Viviane. Uma esperança pra quem sente que a vida estava dentro de uma bolsa.
"O senhor é o André? A Viviane precisa da sua ajuda". Corri para tentar acompanhar o carro das três pessoas que poderiam realmente ajudá-la.
Logo a colocaram no carro e o resto das pessoas que estavam ali se dispersaram. Esperei mais um pouco. Queria indicar um posto médico para os machucados e a delegacia para fazer o B.O.
E, mesmo mal conhecendo direito as ruas da cidade, de algum jeito alguém pôde compreender para que eles soubessem aonde ir.
Todos já estavam no carro e eu ainda sentia que poderia fazer mais por ela.
A abracei.
"Você não está sozinha, tá?"
Eu disse o que realmente sabia e tinha certeza. Queria que ela também estivesse certa disso. E talvez seja por isso que, mesmo que algumas horas depois, eu ainda sinta que podia ter feito mais para a Viviane. Mostrar pra ela que por mais que estejamos todos no escuro, tateando sem saber a quem procurar, a o quê nos apegar, estamos todos no mesmo barco.
Estamos todos juntos e ninguém fica pra trás.

5 comentários:

Anônimo disse...

Saber que fazemos parte de um mundo como esse é mesmo muito pesado.
Aceitá-lo como é, faz parte de prender a lidar com ele e consequentemente ficarmos mais leves e aptos a alcançar mundos melhores e mais elevados.
Acreditar nisso, é Vida!!!

.lp. disse...

Grazi, amei o texto.
Aconteceu mesmo, né? Me parece real.
Acho que eu sentiria EXATAMENTE a mesma sensação.
incluindo a raiva pela curiosidade gratuíta das pessoas e as entranhas conservadoras.
cara, muita sorte pra viviane, onde quer que ela esteja agora.
E quanto a nós grazi, "nós", que pensamos e sentimos o mundo desta forma: esperança.
e uma pitada de coragem.

.lp. disse...

sobre o que você comentou das minhas observações-de-anônimos:

na verdade, normamente eu observo por um tempo muito restrito. De cinco minutos em um metrô lotado à alguns instantes pela janela do ônibus.
as anotações são mentais e, embora fatos raramente sejam inventados, há muito de romantismo nas descrições em si.

Anônimo disse...

tu é um amor mesmo

não que eu não soubesse mas
isso sim é se preocupar...

uma pena pelo que aconteceu, mesmo. ela vai perceber, mais tarde, que por mais frustrante que sejam as perdas, podia ser pior (o que também não é uma coisa exatamente boa, só um conforto)

enfim... =~

Unknown disse...

O mais triste mesmo é a sensação de completa impotencia. Eu nessas horas fico imaginando que podia ser um superman e de alguma forma tentar evitar que a Viviane passasse pelo que passou. Porem logo em seguida me lembro de que a vida é sabia, fazendo coisas que nossa pequena visao dificilmente vai compreender. A nos so resta mesmo orar pelos que por isso passaram e pedir que estejamos sempre a um passo alem do mal presente na terra.